AUTÓPSIA

O despertador de Roland, criminalista dublê de escritor, tocou às cinco e quinze da manhã. Acendeu a luz do abajur de leitura e olhou para sua mulher, que está acordada mas continua de olhos fechados. Não pretendia se levantar tão cedo mas lembrando-se vagamente do motivo do marido estar acordado perguntou: — Por que, mesmo, você vai sair?

— Quero presenciar uma autópsia.  Tem que ser hoje, já está combinado. Como sou um escritor da escola realista quero ver a coisa pessoalmente. Não basta imaginar. Preciso dela para meu próximo capítulo.

— Você já sabe quem vão autopsiar?

— Não. Pretendo ver duas dissecações. Uma de homem e outra de mulher. Ainda não sei bem se na minha estória vou esquartejar macho ou fêmea. — Roland, às vezes, brincando, abusa no humor negro, conversando com a mulher, justamente porque ela não aprecia seu estilo literário e é bastante franca a respeito. Entende que ele não precisa “apelar”, para encontrar leitores.

— Você tem certeza de que o público aprecia essas barbaridades?

— O público masculino em geral gosta, mas é preciso, para compensar, caprichar no estilo, injetando no açougue literário um pouco de filosofia.

—Não seria um desequilíbrio emocional desses leitores?

— Todo mundo é mais ou menos desequilibrado, querida. Não existe gente mais adoidada que certos psiquiatras, por exemplo. O perigo, neles, é que qualquer pessoa, bastando ser capaz de falar, pode ser enquadrada numa anormalidade. Se, por outro lado, é equilibrado e reservado demais, “aí tem coisa…”. Um camarada “certinho em extremo” revelaria, só por isso, algum problema, a ser investigado.

  Uma hora depois Roland está entrando no necrotério. Pergunta a um funcionário onde fica sala do Dr. Moraes, seu amigo e ex-cliente.  Sem sua autorização, não poderia assistir aos exames. Essa autorização já fora concedida. Minutos depois aparece o médico.

— Ora viva! O nosso Zola brasileiro. . . — disse Dr. Moraes, bem-humorado, rosto redondo, corpo atarracado, óculos de metal branco. — De olho na Academia, hein? Já comprou o fardão?

— O fardão me prejudicaria, tiraria minha liberdade. Eu, para impressionar os acadêmicos, teria que retocar demais o que escrevo — respondeu Roland apertando-lhe a mão. — Como é? Estou pronto para o massacre.

— Que tipo de necropsia quer assistir?

— Que tipo como? Há diferenças?

— Claro, depende da finalidade. Bom, se não há especificação, eu escolho. Você vai ver necropsia de duas pessoas que morreram sem assistência médica. Geral­mente gente sem recursos. Para enterrar é preciso verificar a “causa mortis”. Se a morte foi violenta, ou suicídio, também é preciso uma necropsia.

— Pra mim qualquer morte serve. Uma pessoa inteira, claro. Preciso dos detalhes.

— As necropsias são feitas em outro setor, aqui perto.

— Você não diz autópsia. Diz necropsia. Dizer “autópsia” está errado?

— Acho mais apropriado dizer necropsia. “Autópsia”, do grego, rigorosamente seria um autoexame. Necropsia seria o exame de corpo alheio, mas isso de nomes não impor­ta. Vamos?

Caminhando depressa, para acompanhar o médico, Roland sentiu cheiro de formol e outros odores que não podia identificar. Ouviu alguns ganidos.

— Parece que estou ouvindo ganidos de cães. É isso?

— É. São os estudantes de medicina fazendo expe­riências.

— Dolorosas? — indagou Roland.

— Às vezes. Procuram anestesiar antes.

Pararam frente a uma porta de vidro. — Quer dizer que nunca assistiu a uma necropsia? Não vai sentir-se mal, desmaiar?

— Penso que não. Para isso sou algo frio. Se sentir qualquer coisa anormal, saio um pouco.

— Um aviso: não se encoste em nada, lá dentro. Os cadáveres podem estar com alguma doença conta­giosa e você levaria os agentes patogênicos consigo. Convém enfiar as mãos nos bolsos.

Roland acatou a sugestão e ambos entraram no recinto.

Junto à entrada, no lado esquerdo, havia uma mesa com três pequenos cadáveres. Crianças bem novas. Duas escura e a terceira branquinha. Apresentavam imenso rasgo do pescoço ao púbis, mas o rasgo já fora costu­rado. Mesmo que estivessem vestidas e deitadas numa cama, não pareceriam crianças dormindo. A morte deixara a marca nos olhos, ainda que fechados. As perninhas são bem arqueadas, sinal de raquitismo. Despertam um sentimento triste e desagradável.

Ao lado direito da porta vê-se uma fileira de mesas com pequenas rodas nos pés. Em cima de cada mesa, um cadáver. Alguns, com o rosto coberto. O mais pró­ximo de Roland, com a face descoberta, é um rapaz de seus vinte e cinco anos, barbudo, rosto estreito, corpo magro, assim percebido apesar de coberto com um lençol até o pescoço. Seu rosto lembra a representação usual de um Cristo europeu de pele clara. Alto, seus pés magros e amarelos saem muito além do lençol que o cobre, cortado para pessoas de estatura mediana. Roland fica observando o moço e, conforme a posição de quem observa, o cadáver lembra uma conhecida imagem de Tiradentes, o herói da nossa independência. Roland, lembrando-se que ele foi enforcado e esquartejado, pensou: “aqui ele está no lugar certo”.

A mesa vizinha está ocupada pelo cadáver de um homem corpulento, de seus 40 anos. Tem o rosto inchado e expressão hostil.

— Com licença — pediu um enfermeiro, interpondo-se entre Roland e o corpo do homem de feições duras. O funcionário em­purrou a mesa com rodas até que ela ficasse bem paralela à mesa das autópsias, que tem o comprimento de três metros, mais ou menos. Do lado onde ficam os pés dos autopsia­dos existe uma pia de aço inoxidável embutida na pró­pria mesa. Nessa pia os órgãos são lavados, cortados e fatiados para exame.

O cadáver é transferido com alguma brutalidade — prática, rotineira —, da mesa móvel para a mesa fixa, sem a menor “deferência” a um ser humano, embora morto, como se lidassem com um grande saco de batatas. Como o homem é bem pesado, os dois enfermeiros tive­ram que fazer muita força, coordenada — “Vamos juntos: um, dois, três, já!” —, para transferi-lo de mesa, um segurando nos pés e o outro, mais forte, encarregando-se do tronco. Por causa do esforço da remoção, o cadáver foi praticamente rolado em cima da mesa de autópsias, quase caindo do outro lado.

Os braços do morto estavam rígidos e dobrados, junto ao tronco, como em posição de defesa numa luta de boxe. Nessa posição impossibilitaria o trabalho do enfermeiro que se ocuparia do tórax e da cabeça. Era, portanto, necessário esticar os braços do combativo defunto maduro. Roland, sempre imaginativo, involuntariamente pensou: — “Nosso Mike Tyson branco não vai concordar…”

Dito e feito. Foi duro, de fato, conseguir baixar a guarda do falecido, devido à rigidez cadavé­rica. Um dos enfermeiros, o mais franzino, tentou es­ticar o braço direito, dando uma puxada. Nada conse­guindo tentou de novo, fazendo mais força, suamão direita segurando a mão direita do morto. Pareciam, para Roland, disputar uma “queda de braço”. O primeiro resultado foi um empate honroso para o defunto que, certamente, fora um homem fortíssimo.

Não desejando passar vexame frente ao visitante, o enfermeiro fran­zino, como que adivinhando a imaginação de Roland, deu uma rápida olhada para o escritor e usou as duas mãos para esticar o braço enrijecido. Roland, viciado ficcionista, logo imaginou o protesto do morto: “Com as duas mãos não vale! Vou morde a orelha desse desgraçado”! Valendo ou não, o vivo, usando o peso do seu corpo, quase pendurado, ven­ceu a parada, esticando completamente o braço do fa­lecido, enquanto o outro enfermeiro segurava do outro lado, impedindo que saísse da posição correta.

Esticados os braços, o enfermeiro que cuidava da cabeça enfiou um bloco de madeira, à guisa de calço, por baixo das costas do cadáver, que ficou com o peito bem erguido e a cabeça caída para trás. A seguir, pegou uma faca de cozinha, das grandes, e afiou a lâmina em um amolador comprido e cilíndrico. Colo­cou o amolador de lado e começou a cortar o couro cabeludo, iniciando a operação por trás de uma das orelhas.

Fez um talho bem retilíneo, cortando fundo, com pequenos movimentos de vai e vem da faca, para que o fio da lâmina chegasse até os ossos do crâneo. E assim foi trabalhando, usando luvas cirúrgicas, até chegar atrás da outra orelha. Largou a faca e fincou as unhas no corte. Agarrou com força uma das bordas e começou a puxar o couro cabeludo na direção da testa.

O couro cabeludo estava bem aderente ao osso, não desgrudava facilmente. Estalava com seguidos “tac-tac”. Quando a resistência era maior, o enfermeiro ajudava a separação com a faca, cortando os liames ainda existentes por baixo. Assim fez, até que o couro cabeludo, já pelo avesso, chegou à boca do defunto.

Com isso o cadáver ficou horrendo. Como o cabelo não era curto, parecia que o cadáver era barbudo — não o era antes —, e tinha parte do rosto coberto por uma máscara de carne viva cobrindo os olhos.

Até esse momento Roland conseguira aguentar. Vinha engolindo em seco. Seu pomo de adão subia e descia. Mas foi preciso mobilizar totalmente sua resistência quando o enfermeiro pegou um serrote de arco e começou a serrar a testa, horizontalmente, criando uma tampa de osso. Aquela testa parcialmente nua e ensanguentada, serrada com a maior sem-cerimônia, foi um espetáculo que só não provocou vômito porque Roland sempre teve dificuldade para vomitar.

O enfermeiro serrou completamente o crânio, criando a larga calota óssea. Ao que parece o cérebro deveria ser preservado anatomicamente, para se constatar se fora danificado por alguma pancada na cabeça ou AVC.

Terminada a utilização da serra fina, o enfermeiro tentou separar a calota com o mero emprego da mão enluvada. Fincou as unhas na fenda dos ossos, como fizera antes com o couro cabeludo mas não conseguiu seu intento. Talvez por não conseguir espaço suficiente para in­trodução das unhas.

Tudo era rotina para o enfermeiro. Pegou uma talhadeira e um pequeno martelo. Colocou a lâmina da talhadeira na fenda da testa e com o martelo deu algumas pancadinhas na outra extremidade, forçando facil­mente a separação das bordas. Pôs de lado a talhadeira e, com as unhas bem apoiadas na borda do osso separou a calota, que veio, talvez, com boa porção do cérebro nela grudada. Na posição em que estava, Roland não pôde ver esse detalhe.

Usando as duas mãos, o enfermeiro retirou com cuidado o encéfalo viscoso, que fazia “cloft, cloft”, ao se desgrudar do crânio.

Nessa altura, o outro enfermeiro já havia aberto a barriga, do externo ao púbis. Roland nem o vira fazer o grande corte longitudinal do abdómen, tanto se impressio­nara com o que ocorria na cabeça do cadáver. Quando afastou os olhos da cabeça sem tampa, o tórax já estava aberto. O segundo enfermeiro, munido de uma tesoura especial, de lâminas curtas e recurvadas, dedicava-se a cortar os ossos protetores do tórax para poder extrair e exa­minar o coração e outros órgãos.

O mesmo enfermeiro — ou seria o outro? Roland já estava meio grogue na carnificina — revolveu os intestinos esverdeados e arrancou o fígado, que foi colocado perto da pia, após o que foi lavado e fatiado. O enfermeiro cortava e examinava a cor das fatias, trocando algumas palavras com o médico, que fazia anotações. Em seguida, pegou o cérebro que seu colega lhe dera e passou a cortá-lo, também em fatias.

Enquanto esse enfermeiro examinava as fatias dos órgãos, o outro pegou um bocado de serragem, que estava num saco aberto, ao lado da mesa, e preencheu o vazio do crânio. Recolocou a tampa de osso na cabeça e puxou de volta o couro cabeludo. A calota óssea ficou nova­mente coberta, mais apresentável.

— Agora ele ficou desmiolado — brincou o médico, entre brincalhão e sério, pensativo. Sempre que cortava o cérebro dos autopsiados sentia algo diferente, principalmente quando o falecido era uma pessoa intelectualizada. Não era o mesmo que cortar um fígado, um rim. Imaginava estar cortando também milhões de ideias e sentimentos. Algo assim como queimar algumas dezenas de livros.

Roland, vendo a boca meio aberta do morto, es­tranhou:

— A língua dele está muito escura, não acha? A morte escurece a língua?

— Onde? — perguntou o enfermeiro, curioso. Forçou o maxilar para baixo, abrindo bem a boca do defunto. Não satisfeito, querendo melhor examinar, agarrou com força a língua e puxou-a o máximo que pôde.

— Não há nada — concluiu, dando uma examina­da. — É assim mesmo — disse, olhando a língua enor­me, que se assemelhava a uma língua de vaca, só que bem menor. Satisfeito com a inspeção, empurrou a língua de volta, fechando a boca do falecido. Em seguida, passou a cos­turar o couro cabeludo, utilizando uma espécie de agulha de sapateiro. Nesse trabalho, manipulava com brusquidão a cabeça do defunto, pouco ligando para a expressão indignada do homem que, no céu, ou no purgatório — Roland pensou — deveria estar fervendo de raiva com o desrespeito. Em certos momen­tos, por necessidade do serviço, o enfermeiro empurrava aboche­cha de um lado para o outro. Com isso a expressão do morto parecia ainda mais zangada com os insultos, quase tabefes com a mão espalmada.

Os enfermeiros, com a longa prática, estavam bem sincronizados na tarefa. Enquanto o da cabeça costu­rava grotescamente o couro cabeludo, o outro rapidamente tirava umas conchas de material da cavidade abdominal e jogava os órgãos de volta — fígado, tripas, pâncreas, etc. O cérebro também foi jogado dentro do ventre. Roland não pôde deixar de imaginar o trabalho que daria aquele cidadão, havendo um juízo final, com os mortos saindo dos tú­mulos. Para ler a sua alma seria preciso examinar a pança. Como muita gente que conhecia.

A barriga também foi costurada depressa, com um pouco de serragem dentro para absorver o sangue que ainda restara.

Roland, depois daquela cena de violência macabra, achou necessário descansar um pouco. Pediu para sair. No corredor, respirou fundo e depois sentiu necessidade de fumar. Deu uma tragada e concluiu que pouco sabia da vida, em seu sentido mais profundo, apesar de seus quarenta anos.

— Como é? Pensei que o senhor fosse desmaiar — disse o médico. — Não seria fato incomum, para quem assiste pela primeira vez.

— Quantas autópsias vocês fazem por dia?

— Umas quarentas, em média.

— Estranhei que o cadáver não fedia. Pelo menos não tanto quanto eu esperava.

— É que saiu do congelador. Mas o senhor precisa ver quando falta energia durante um dia ou dois. Já aconteceu. Cinquenta cadáveres se decompon­do não há cristão que aguente.

— Nesses casos, como os senhores fazem?

— Com mau cheiro e tudo!

— Vendo uma autópsia, constatamos que o homem não é nada. Um pe­daço de carne precária, sempre prestes a se decom­por. Uma lição de humildade, o espetáculo horrendo que acabei de presenciar. Você tem religião, Dr. Moraes?

— Sou católico… Então, vamos continuar? Às nove emeia preciso comparecer a uma reunião.

Este conto faz parte do livro “Tragédia na Ilha Grega” que será lançado em breve.

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Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
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