Poupança trágica

João, metalúrgico, parece reunir coragem, olhando a marmita de alumínio que se encontra no colo, destampada. — “Hoje ou amanhã? — questiona-se. Está com medo — e não é para menos —, mas sabe que terá coragem de fazer o que considera necessário. Na verdade, necessário não é, mas quem consegue enfiar juízo na cabeça de um homem, na sua situação? Hesita apenas quanto ao momento de agir. Mas se deixar para amanhã, a tensão será a mesma ou maior. Quanto mais depressa resolver o problema, melhor.

  Neste exato momento, encontra-se sentado no chão da fábrica, pernas estendidas, costa apoiada na parede. É hora do almoço e, à sua volta, cerca de quinze colegas comem o almoço que trouxeram de casa. O operário mais próximo, o “Canhoto” — que ele considerar um mau caráter — está saboreando, com exibicionismo, uma sobrecoxa de frango grelhado. Dos presentes, é o que sempre come melhor. Frequentemente se dá ao luxo de almoçar na lanchonete da esquina, sem preocupação com o preço, às vezes até pagando a despesa de alguns colegas. Tem prestígio dentro do sindicato. — “O que está acontecendo com ele? Matou a tia rica solteira e recebeu a herança”?

   A visão do frango grelhado aguça involuntariamente o apetite do João que passa a olhar o ovo frito, montado no arroz, que trouxe de casa. A sobremesa será uma banana. Não compreende como possa sentir fome num momento tão difícil quanto este. Pelo jeito, corpo e alma, nele, vivem separados.

 Teme vomitar se logo após o almoço fizer o que pretende. Mas, se agir antes permanecerá com fome, pois não conseguirá comer em seguida.

Enquanto hesita, confere seu “extrato bancário”, que não está escrito em papel, mas em carne, ossos e unhas: sua mão esquerda, um membro grande, moreno, ossudo. Mão de homem alto. Difere anatomicamente da normalidade pela falta de duas falangetas. E também difere em seu significado econômico porque ela é sua “caderneta de poupança”.

Explico: nosso homem, quando em dificuldade financeira, esmaga “involuntariamente” na prensa rápida da fábrica um pedaço de dedo, recebendo a indenização acidentária.

A primeira “aplicação dedal”, lembra-se, foi uma falangeta que serviu para pagar aluguéis atrasados, evitando o despejo. A segunda — pasmem, mas com cautela, porque o consumismo inventa coisas do arco da velha — para comprar uma televisão a cores, pressão das duas filhas, já mocinhas, que alegavam passar muito tempo na rua porque não havia televisão “que prestasse” em casa. Elas nunca souberam do sacrifício.

A ideia de obter recursos “aplicando” pequenas frações de sua anatomia surgira por acaso, quando de um acidente — verdadeiro, involuntário — sofrido por um colega. Este, no fim do horário de trabalho, distraído, não afastara a tempo a mão. Apenas levara um susto quando a prensa baixara, com força e velocidade. Retirando o membro de imediato, esse colega chegara a pensar: “Quase pegou minha mão!”  Mal pensou viu dois dedos bem amassadinhos na placa de aço. Aí, quase desmaiara. Não de dor, mas de susto. A dor veio depois.

 Por se tratar de um típico acidente de trabalho, a indenização foi paga imediatamente, sem burocracia ou contestação na justiça. Houve ainda, no caso desse colega, um período de afastamento do trabalho, remunerado. Quando o acidentado retornou ao trabalho, não parecia infeliz, porque, com o dinheiro da indenização, comprara uma lambreta usada, o que lhe permitia passear e escapar dos ônibus superlotados. Vendo-o partir motorizado nosso João, ficara refletindo sobre a utilidade de certos “acidentes”. Um ano depois do acontecido com o colega, na iminência do despejo do imóvel por falta de pagamento, João sacrificara parte do dedo mínimo da mão esquerda. Foi um ato de desespero, certo, mas precedido de alguns cálculos. Um ano depois, “perdeu” parte de outro dedo, vizinho do primeiro. E de tanto calcular, tornara-se quase um especialista em matéria de indenização por perda de membros. Uma espécie de gerente de banco, que conhece, na palma da mão, digo, nos cotos dos dedos, o rendimento de seus “papéis”.

O homem que neste momento se domina para não almoçar — pretende perder algumas falanges, mas não a vida, com uma congestão, esmagando um dedo estando com o estômago cheio. Ganha mal, mas não tão mal assim. Recebe três salários-mínimos brasileiros, o que lhe permite uma subsistência cautelosa, difícil, mas não impossível. Razoável, portanto, que o leitor se pergunte qual a terrível necessidade que o empurra para tão absurdo e doloroso “investimento”.

A explicação é simples. Nosso homem sofre do “coração”. Se ele fosse mulher berbere, no Marrocos — segundo um livro de curiosidades antigas —, e estivesse apaixonada, diria que seu “fígado” tinha sido “roubado”.  Para esse povo marroquino, a sensação do amor nascia no fígado, assim como hoje falamos em “coração”, embora sabendo que a “coisa” age no cérebro. Enfim, ele está amando. Sabe-se apaixonado, escravizado por sensações de adolescente de cem anos atrás. Mas a consciência desse ridículo não o alivia nem um pouco. Está de tal modo caído por uma mocinha de nome Neusa, que quando não a pode ver sente uma espécie de garra apertando o coração. A todo momento, pensa nela, uma “durona”, porque até agora não se entregou a ele. Por duas vezes, distraído, com dolorosa saudade, João quase perdeu a mão em acidente verdadeiro na mesma “agência bancária”, a prensa. Está casado há quinze anos, tem sido um marido noventa por cento fiel, mas ao contrário de seus colegas de “fraqueza”, cada vez que “pula a cerca” se apaixona como um adolescente romântico.

Neusa é uma mocinha bonita e decidida, que gosta de pôr “os pingos nos is”. Aliás, ela usa e abusa dessa expressão. Desde que começou seu “flerte” com nosso “investidor” — na opinião dela, um “coroa” bonitão — vem sofrendo uma terrível guerra psicológica, auditiva e até mesmo braçal dentro de casa. Sua mãe mantém uma vigilância constante e desagradável contra esse flerte ou namoro com um homem casado. Aliás, com qualquer homem que não demonstre desejo de casar e fazer tudo direitinho, no cartório e na igreja, com bom emprego e sem vícios. Ameaçou-a de expulsão, caso não parasse com aquilo. Presume que sua filha ainda é virgem. E se ela for expulsa, para onde irá?

Neusa precisa urgentemente sair de casa. Mas morar onde? Na casa dele, juntamente com sua mulher? Não chegaria viva até a cozinha. A esposa do João é uma senhora vigorosa, até musculosa, trabalhadeira, moralista e corajosa. Certa vez, saíra no tapa com um cobrador de ônibus que pretendia iludi-la no troco. É muito mais enérgica do que o marido, um sonhador. Este sempre reconhecera o valor da sua mulher, sendo-lhe grato por muitas coisas. E tem-lhe medo até mesmo físico, devido à retidão e firmeza dela, não obstante seja um homem que não teme outros homens. Mas a força da nova paixão supera qualquer outro sentimento.

Com o sacrifício que fará daí a instantes, poderá “montar casa” para a Neusa. Ela deixara claro que gostava muito dele, não obstante a diferença de idades, mas que não aguentava mais o ambiente de perseguição dentro de casa. Ameaçava fugir para outra cidade, em outro Estado, sem deixar endereço. E bonitinha como ela só, ele pensou, logo arranjaria outro homem. Assim, onde arranjar dinheiro urgente, de modo a mantê-la na cidade?

Nosso angustiado, vez por outra, lia em jornais, nos fins de semana, que um homem matara a amante, ou esposa, e depois se suicidara. Nessas ocasiões, quando seus colegas ou familiares censuravam, até com gracejos, tão louco sacrifício pelo amor de uma mulher, nosso homem respondia apenas com o silêncio. Conhecia-se. Sabia que, um dia, poderia chegar a tanto. Se teria coragem até para colocar sua cabeça debaixo de uma prensa, por que não poderia deixar ali apenas alguns dedos? Ouvindo, dias atrás, a expressão “Vão-se os anéis, fiquem os dedos”, ele intimamente adaptara o conselho para “Vão-se os dedos, fique a Neusa!”.

Não! Não tinha mais dúvidas. Para reforçar a decisão, tomar coragem, era só lembrar o rosto dela, sempre presente na sua alma. Mesmo que levasse um fora após um ano, dar-se-ia por recompensado. Aquilo já não era um caso de amor, mas uma doença, da qual só se livraria “comendo” a causa.

O horário de descanso estava se esgotando. “Afinal, almoço agora ou não?” —, ele se perguntou. Se comesse, o acidente planejado pareceria mais natural, pois ninguém pode imaginar que uma pessoa vá almoçar prosaicamente, sabendo que logo em seguida perderá os dedos, esmagados. Comeu rapidamente, procurando não pensar e, quando se dispunha a ir até o bebedouro, a campainha da fábrica tocou, anunciando o término do intervalo para o almoço. Tinha que ser agora! Desistiu da água e aproximou-se da prensa onde trabalhava.

Olhou em volta e percebeu que “Canhoto” o observava. Desviou a vista, mas quando olhou outra vez na direção do colega, este continuava fixando-o. — “O que quer esse desgraçado?” — perguntou-se. Teria adivinhado sua intenção?

Lembrou-se, então, que tendo sofrido já duas lesões na mesma mão, a esquerda, sendo destro, não seria melhor sofrer o “acidente” na mão direita? — Não, não deformaria sua mão direita, seu único ganha-pão. Melhor seria caprichar na “cena”, com a mão esquerda, dando um “escorregão” bem convincente. Para isso, precisava de um pouco de lubrificante nas solas dos sapatos. Pequenas manchas de óleo eram comuns no chão, naquele local da empresa.

Com forçada naturalidade, deu alguns passos para pegar o recipiente de óleo, mas, lembrando-se que a presença do recipiente, perto do “acidente”, poderia causar estranheza, decidiu utilizar apenas um pouco da substância na palma da mão, o suficiente para passar nas solas. Retornou para perto da prensa e fingindo amarrar o sapato, agachou-se, saindo do campo de visão do “Canhoto”. Agachado, besuntou as solas dos sapatos. Em seguida, limpou a mão em um pano sujo e pegou uma peça que precisaria realmente ser amassada, colocando-a na posição adequada. Preservaria o polegar, o indicador, e o dedo médio da mão esquerda. O resto podia virar bife com osso.

Para que não houvesse dúvidas, depois, quanto ao “escorregão” que explicaria o acidente, o operário posicionou suas mãos e pés — tal qual um meticuloso diretor de filmes — para que a cena ficasse bem convincente. Para isso, fez um “ensaio” de movimento antes de acionar a prensa.

Algo errado, porém, aconteceu no ensaio. Com o movimento rápido e deslizante de um dos pés, ele perdeu o equilíbrio e, instintivamente, tentando não cair, sua mão direita foi inteiramente esmagada.

Não houve dor imediata. Apenas um choque, seguido da sensação de horror, porque de forma alguma João queria aquilo. Sentiu um calafrio quando viu o sangue saindo do coto sangrento. Tentou correr, para pedir auxílio e estancar a hemorragia, mas por causa do óleo na sola escorregou de novo e caiu, batendo a testa na quina de uma caixa de metal. Permaneceu meio minuto desacordado. Socorrido por dois funcionários que trabalham no escritório e raramente transitavam pela área de produção, foi levado ao pronto socorro e dali para um hospital.

Alguns dias depois, já fora de perigo, mas deprimido por perder a mão, sentindo ainda a “dor fantasma” na mão ausente, encontrava-se em casa, fazendo contas, com a mão esquerda, usando a maquininha de calcular — presente da esposa. Refazia os cálculos porque a indenização agora seria muito maior. Provavelmente seria aposentado por invalidez, porque era destro.

Sua esposa parecia-lhe um tanto indiferente, como se carregasse no íntimo algum rancor. Mas poderia ser simples tristeza ou consciência pesada dele mesmo. Afinal, fizera uma tremenda burrada. Sem a mão direita, precisaria se acostumar com a outra e arranjar nova profissão em que utilizasse mais a mente que as mãos.

A empresa onde trabalhava estava demorando para se pronunciar sobre a indenização. Alguma coisa não estaria bem?

 Alguns dias depois do acidente, alguém bateu palmas junto à sua porta. A mulher foi atender. Era um advogado da empresa, simpático, delicado, com pouco mais de cinquenta anos. O operário se animou, pensando: — “Oba! Ele veio trazer o cheque pessoalmente”. Estranhou, porém, o fato de ser procurado, em casa. Em vezes anteriores, não fora tão prestigiado.

 Após os cumprimentos de praxe, o advogado pigarreou e perguntou à mulher do acidentado se poderia falar a sós com seu marido.

              A mulher pareceu surpresa e ofendida com a solicitação:

 — Não há necessidade, doutor. Aqui em casa não temos segredos.

O advogado hesitou, constrangido, mas logo insistiu: — Minha senhora, não há o que temer. Nesses assuntos — mentiu —, é exigência da firma que a conversa seja apenas entre o empregado e o representante da firma. Evita discussões entre familiares, com versões diferentes sobre o fato. Não leve a mal.

— Por que não posso ouvir? — insistiu a mulher, com as mãos na cintura, erguendo as sobrancelhas. Era de sua natureza brigar, discutir, nada entregar de modo fácil. Seria uma grande líder em outro meio, se fosse interessada em política.

— Porque tem que ser assim! É a regra — mentiu o advogado, erguendo a voz, já aborrecido com a insistência. — Se a senhora não aceita as normas da empresa, muito bem! Eu volto agora mesmo para meu escritório e seu marido que vá tratar de seus interesses no departamento do pessoal.

 Vendo que a mulher ainda assim hesitava, fez menção de se levantar para sair.

— Está bem… — ela concordou, de má vontade. — Preciso mesmo ir à padaria… Podem conversar à vontade… — E saiu da sala de cara feia, fechando a porta.

O advogado voltou a sentar-se e encarou o operário como se o estudasse, em total silêncio.

— Então? — perguntou o maneta, inquieto.

O advogado pigarreou. Procurando deixar o interlocutor à vontade, observou de maneira simpática, com um meio sorriso nos olhos:

            — Está se sentindo melhor?

            — Ah, já… Mas ainda dói. A gente tem a impressão de que é a mão que está doendo. O médico me explicou que é a “dor fantasma”.

            De repente sério, o advogado, fitando o operário bem nos olhos perguntou:

            — Por que você fez isso?

            O coração do operário imediatamente se acelerou. Cauteloso, respondeu:

            — Isso o quê?

            O advogado sorriu, compreensivo. Sentia uma certa simpatia pelo homem a sua frente. — Vou ser franco com o senhor… Pessoalmente, se dependesse só de mim, até apressaria o pagamento da sua indenização. Mas lamento dizer que há uma coisa em jogo e que torna isso impossível.

            O operário retesou-se, inquieto, no velho sofá, sentindo a ameaça no ar. Mas precisava reagir:

            — Impossível?! O que é impossível?

            — O pagamento da indenização.

            — Diabo! E por que não? Isso não vale nada? — perguntou, erguendo o toco, quase encostando-o no nariz do advogado. — Que “maracutaia” é essa? Quem paga é o INSS, não o patrão!

            O advogado não se abalou:

            — Você sabe muito bem porque não pode ser indenizado…

            — Não sei! — não ia ser agora, aleijado, que se entregaria facilmente.

            — Olha… — o advogado procurava ser didático e sem tom de crítica. — Quando você fazia toda aquela encenação, estava sendo filmado. A câmera registrou tudo: você pegando o lubrificante, abaixando-se, escondendo-se para passá-la na sola do sapato, ensaiando o acidente. Na verdade, você acabou escorregando de verdade, não foi? Deu para perceber que você se feriu além do planejado. Quantos dedos você queria perder?

            O operário estava arrasado. Não era, no fundo, um homem de mau caráter. Sentia-se esvaziado de energia, frio como uma lagartixa, mas sabia que deveria continuar lutando, mesmo sem forças. Com voz apagada, perguntou:

            — Não sei do que o senhor está falando…

            — Sabe, sim… Tenho pena do senhor… Pessoalmente, vejo a coisa com certa simpatia, mas…

            — Por que estavam me filmando? Sou tão importante assim?

            — A filmagem nada tinha a ver com a sua pessoa… Há tempos que suspeitávamos do seu colega, aquele apelidado de “Canhoto”. Ele vinha furtando peças pequenas, as mais caras, há vários meses, mas não tínhamos uma prova segura. Furtava e ainda “fofocava”, a mando do sindicato, incentivando greves e falando mal da empresa. Tem ambições políticas. Aí, o chefe da segurança sugeriu que a firma instalasse, em segredo, uma filmadora escondida entre aquelas caixas da prateleira mais alta, onde ninguém mexe. Assim, pegamos o “Canhoto” com a mão na massa, e você por mero acaso. Quando você estava caído, desmaiado, o  malandro tratou de encher os bolsos extras que tinha mandado costurar dentro das calças. Agora, a pergunta mais importante: Por que você fez isso?

            Responder o quê, João pensou. Se me filmaram até passando o óleo na sola, não adianta continuar mentindo, mas quem sabe esse advogado talvez invente uma saída que me ajude:

            — O senhor não vai acreditar… Precisava de dinheiro…

            — Isso não precisa dizer… Ninguém joga fora os dedos por diversão. Minha pergunta é: para que você precisava do dinheiro?

            — Tenho dívidas. Estou para ser despejado…

            O advogado se ergueu, impaciente:

            — Por favor, diga a verdade… Você inventou isso agora… Antes de procurá-lo, examinamos a sua vida. Seu aluguel está em dia. E não consta que você é viciado em drogas. Vamos ser francos: não seria alguma complicação amorosa? Você tem sido visto com uma mocinha…

            — “Mais essa, a Neusa!” — pensou o acidentado. Não adiantaria mentir. Quem sabe, sendo sincero, comoveria aquele advogado tão compreensivo.

            — Desculpe, vou ser franco… Fiz isso por amor… Estou apaixonado… Não posso viver sem ela… Precisava alugar uma casa ou quarto e, sem dinheiro, o senhor sabe que não dá…

            O advogado já passara também por dois problemas assemelhados. Sentiu um impulso de solidariedade. Pretendia ser também escritor, além de advogado. Neste caso não agia apenas como advogado. Só mesmo uma paixão louca — e muita coragem —, pensava, levaria um homem a esmagar partes de seu corpo, para não perder uma mulher. 

            — Por mim, como já disse, o senhor receberia a indenização, mesmo porque quem paga é o INSS . Num país de tantas fraudes, seria uma coisinha de nada… Afinal, você acabou perdendo a mão inteira. Ocorre que, sem esse filme, nós não podemos “pegar” o “Canhoto”, que tem bons advogados no sindicato…

            — Não dá para cortar, no filme, a parte em que apareço?

            — Pensei nisso, mas não dá… Se eu cortasse, o advogado do “Canhoto” diria depois que se trata de um filme editado, cortado. Não serviria como prova.

            — O canalha! — exaltou-se o operário, pensando no colega de fábrica. — Sempre tive nojo daquele cara! Era por isso, então, que ele me olhava, disfarçando… Era o contrário! Que mal esse cara me fez… Mas o senhor não pode examinar de novo e descobrir uma saída? Olhe como estou — e ergueu o toco, dispondo-se a tirar as ataduras.

            — Não, não preciso ver! Não adianta! O problema é que, se nós escondermos a sua manobra, não informando o INSS — que estava sendo prejudicado com a tua fraude , inclusive dando mal exemplo aos outros empregados —, posso entrar numa fria, como advogado, porque quem se auto lesiona, comete crime de estelionato. Eu seria um cúmplice, no que se refere ao prejuízo do INSS… O Canhoto precisa ser demitido por cometer furtos contra a empresa, sem sair como herói e vítima do patrão.

            — Uma paixão desvairada, tenho que confessar… — explicou o operário, dramático, erguendo a voz, aproveitando o inesperado bafejo de simpatia que lhe poderia trazer alguma vantagem.

            Nem bem disse isso sua mulher abriu a porta com violência, entrando na sala como um furacão, aos gritos:

            — Desvairada! Paixão desvairada! Sem vergonha! Maneta burro! Só não meto a mão na tua cara porque não bato em aleijado!

            — Calma, você não entendeu!

            — Entendi tudo! Estava escutando atrás da porta, me dominando para não te meter a mão! O “Romeu” burro então ia perder os dedinhos por causa de uma biscate sem vergonha? Pois informo que perdeu a mão e a putinha! Nesses dias em que você esteve no hospital, tive uma “conversinha” com ela. Uma vizinha já vinha me buzinando no ouvido sobre esse “romance” escondido. Mas perca as esperanças, bobão, porque depois da nossa conversa ela não terá coragem nem de olhar pra tua cara. Está apavorada. Se eu mandar ela lamber meu sapato, ela lambe! Eu não tinha te contado nada, até agora, porque você tinha perdido a mão. Pensei que tinha sido um acidente. Fiquei até com pena, mas estou vendo que não devo ter pena de um fraco, que aceita perder os dedos por uma biscate. Eu já vi que não valho nada pra você… — E, dizendo isso, saiu da sala para não chorar.

            Silêncio sepulcral na sala.

            O advogado se ergueu, impressionado com aquela tragédia doméstica. Gostava de teatro, mas aquilo suplantava qualquer peça. Ao sair, disse que iria reexaminar o assunto e que esperasse alguns dias, não fazendo nenhuma “besteira”. Mas não lhe garantiu coisa alguma.

            Caminhando até o carro, o advogado estabeleceu um plano de ação. Iria trocar ideias com um dos diretores da firma, que já tinha tido alguns problemas domésticos assemelhados. Um pouco de “precedentes amorosos” operaria maravilhas. Tinha quase certeza que encontraria alguma saída para o maneta. Afinal, para que existem os advogados?

            Quando o causídico se retirou, o operário foi para o quarto, deitou-se de costas, cobriu os olhos úmidos com o antebraço dobrado e ficou quase tão imóvel quanto um morto. Não tinha ânimo nem para respirar.

            Na cozinha, a mulher, zonza, pressão arterial nas alturas, mexia mecanicamente nas panelas e enxugava as lágrimas. Precisava fazer o almoço.

       FIM

Este conto faz parte do livro “Tragédia na Ilha Grega” que será lançado em breve

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Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargador aposentado
oripec@terra.com.br